segunda-feira, 20 de julho de 2015

Nascido e criado nas ruas

   Meus olhos estavam fixos naquela criatura, a qual ainda não descobri a origem. A fisionomia me levou a crer que se tratava de um ser humano, porém as condições em que se encontrava e a maneira como era tratada pelos que passavam ao seu redor, me fizeram acreditar que era um bicho.

   Fui ao shopping da cidade decidido a comprar um par de tênis novo. Num impulso comprei logo o mais caro que encontrei - minha vida já tá uma merda mesmo, talvez estes tênis novos e caríssimos me deixem feliz - pensei comigo. Na volta para o meu pequeno apartamento, resolvi me sentar um pouco no banco de uma praça e ver o tempo passar, tomar um ar fresco. Foi aí que me deparei com aquele ser grotesco, sentado do outro lado da rua pedindo esmolas. Um mendigo, para ser mais claro. Carregava consigo  um litro de aguardente, do qual tomava goles em intervalos não determinados. De tão bêbado que estava, ria abestadamente sem motivo ou razão visíveis. Como poderia estar aparentemente feliz se encontrava-se em situação tão deplorável? Por um momento senti inveja do infeliz alegre. Estava  em uma situação mil vezes pior que a minha e conseguira ficar alegre com algo bem mais barato que aqueles caros tênis que comprei. Talvez valessem mais que a vida dele. Pensei em trocar de lugar com o mendigo por um instante, só para experimentar um pouco daquela alegria. Recobri a consciência em seguida, foi apenas um breve surto de loucura tal hipótese.

   As pessoas que passavam perto do mendigo o olhavam com expressões de asco. Seu fedor  era perceptível de distâncias consideráveis, os piolhos pareciam saltar de sua cabeleira insalubre. Precisava tomar um banho. Me lembrei daqueles cachorrinhos de madame, limpinhos ao extremo e de barriga cheia após três refeições diárias. Talvez o mendigo estaria de barriga vazia a dias. Talvez um cachorrinho de madame fosse considerado mais humano que o indigente, que talvez merecesse muito mais ser paparicado por alguma madame. O certo, era que muitos que passavam pelo mendigo, o viam como um cachorro vira-lata.

   Nada poderia se afirmar sobre sua história, o indigente não deveria ser subestimado por ninguém. Quem sabe algum dia fora rei de alguma nação não existente mais, quem sabe já fora astronauta e tenha viajado pelo cosmos. Talvez até já tenha nascido mendigo. O único abrigo em que realmente se sentiu seguro pode ter sido o ventre de sua mãe. Nascido e criado nas ruas, sentiu na pele o que realmente é sofrer na vida. Minhas várias contas a pagar não passam nem perto das noites de frio que o indigente enfrentou. Me senti na obrigação de dividir o par de tênis com o mesmo, me sentar ao seu lado e aprender um pouco sobre como sobreviver na vida. Outro breve surto de loucura. 

terça-feira, 14 de julho de 2015

As sem-razões da dor

Eu te odeio porque te odeio.
Não precisas ser inimigo,
e nem sempre ei de te odiar.
Eu te odeio porque te odeio.
O ódio é estado da dor,
e com a dor não se flerta.

A dor é dada aos poucos,
é semeada no impossível,
na distância, na escuridão.
A dor foge a explicações
e a desculpas várias.

Eu te odeio porque não odeio
bastante ou demais a você.
Porque a dor não se doa,
não se oferece nem se procura.
Porque o ódio é o ódio a nada,
Inseguro e irado em si mesmo.

A dor é prima do amor,
e do amor impossível,
por mais que o tragam pra perto (e trazem)
a cada instante de solidão.

(parafraseado de um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "As sem-razões do amor").



quinta-feira, 9 de julho de 2015

O Eremita Urbano

   Observa atentamente a movimentação na selva de pedra, através da janela de sua caverna-apartamento. O eremita urbano precisa se ausentar dela, por motivo de força maior. Não gosta disso, mas é preciso. É obrigado por uma necessidade do mundo real a se desacorrentar da janela virtual. Através dela consegue viajar a outros mundos que não lhe pertencem, mas que consegue explorar assumindo a alma de um guerreiro elfo. O mundo do qual realmente deveria pertencer não lhe interessa, por isso não o explora como deveria fazer. Entretanto, a bebida mágica de seu mundo acabou e ele deve obter mais. Sem essa bebida, seu corpo não irá suportar o momento de transposição para outros mundos. Precisa ir comprar mais pó de café se quiser virar a noite jogando RPG. Não pode demorar muito, falta pouco tempo para que a tão esperada rodada final comece e há uma reputação a defender. “Já está escuro lá fora, tenho que ir”, diz esperando por um lampejo de coragem. Sua barba está por fazer e em sua camiseta há uma grande mancha de café de duas noites atrás. Mas sua aparência pouco importa. É um dos guerreiros mais fortes do mundo mágico, no mundo real, apenas um eremita urbano. Arma-se apenas de seu relógio banhado a ouro, a coisa mais valiosa que possui neste mundo. “Tenho que estar de volta em uma hora”, tempo marcado para completar a sua missão.

   O eremita urbano precisa avançar pela trilha que adentra a selva de pedra para chegar ao seu destino, a área de coleta de itens essenciais para sobrevivência, o supermercado. “Vinte minutos para ir, vinte minutos para voltar”, olha para seu relógio e demarca, o eremita não se sente à vontade neste mundo. Achava que à noite não haveria tanta movimentação, mas há vários de sua espécie dividindo espaço com ele nesta trilha. O céu dominado pelas trevas, este é o cenário em que os outros de sua espécie revelam suas verdadeiras intenções, um jogo entre caça e caçador. Nunca confiou em outros caçadores, talvez por isso tornara-se eremita urbano. O frio da noite se intensifica a cada caçador que cruza o seu caminho. Não consegue enxergar seus rostos, apenas borrões amedrontadores que lhe causam angústia. Prefere desviar o seu olhar para o relógio ao invés de encará-los. “Vinte mais vinte, quarenta minutos”, a aflição em explorar este mundo se intensifica.

   Finalmente chega ao seu destino. O que deveria ser traduzido em alívio se transforma em mais aflição: supermercado lotado. Normalmente não haveria muitos de sua espécie em busca de itens para sobrevivência, justamente neste horário. Por isso frequentava o supermercado apenas tarde da noite. Foi traído pela certeza. Uma promoção relâmpago atraiu vários caçadores, que avançaram nos produtos como um grupo de urubus que cerca uma carcaça. “Não se pode confiar neste mundo, ele está repleto de armadilhas”, lamenta o eremita urbano. Não estava preparado para lidar com elas. Com seu precioso pó de café em mãos, restava agora enfrentar uma enorme fila para pagar.

   Esconde sua fúria por detrás de uma séria expressão facial. Se estivesse armado de sua espada de guerreiro elfo, aniquilaria a todos que estavam em seu caminho sem pestanejar. Mas estava no mundo errado, no papel errado. Aqui é eremita, apenas isso. Nada poderia fazer, a não ser esperar. Dez, vinte, trinta minutos se passam. Seu relógio dourado parece ser uma bomba-relógio. O eremita é o pavio, que está prestes a explodir em ira profunda. Falhou em completar a sua missão. Quer realmente desferir golpes mortais em seus concorrentes de fila, mas não tem a coragem necessária para tal feito. “Covarde, covarde”, diz a voz em sua mente. Cedeu a pressão deste mundo que tanto despreza. Queria ser também um guerreiro neste mundo, pois um solitário eremita é facilmente derrotado pelos demais. Enfim é atendido, mas nem mesmo isso é capaz de apagar sua frustração. É hora de pegar a trilha de volta para a caverna-apartamento.

   O eremita urbano anda a passos largos para chegar em casa. Apesar de já ter perdido o início da partida de RPG, seguia confiante pela trilha, que já estava deserta. “Um, dois, três, quatro minutos”, continuava a contagem de seu relógio dourado. Ainda havia a possibilidade de participar do jogo. Seria a redenção de um guerreiro que todos achavam estar morto, mas que renasce e derrota todos os seus inimigos, mesmo estando em total desvantagem. Derrotaria todos os elfos das trevas. Não havia mais ninguém na trilha para encará-lo e mesmo se houvesse ele não iria temê-los. O guerreiro tomara a alma do eremita, não o contrário. Bastava chegar em casa. Entretanto, até mesmo o mais valente dos guerreiros esta suscetível a armadilhas. Um inimigo surge das trevas: - E aí tio, relógio maneiro esse daí, é puro ouro?

   O guerreiro é seguido por um elfo das trevas. Ele é ignorado, mas insiste em desafiar o guerreiro: - Vai responder não? Então vai passando aí, perdeu mermão! - O inimigo apresenta sua arma, uma faca. O guerreiro está em desvantagem, está armado apenas de sua valentia. O melhor entre os melhores guerreiros nunca deve se entregar. A luta aparenta ser possível de se vencer, mas o guerreiro ainda apresenta traços de eremita. Não possui a força necessária para lutar. Um golpe. Sangue espalhado pela trilha. O guerreiro é derrotado neste jogo entre caça e caçador. Sua alma é dissipada pelas trevas. O eremita urbano ousou explorar o mundo do qual deveria pertencer. Agora só a morte lhe pertence. Fim de jogo.